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A Bíblia pode ser lida como literatura. É no que editoras apostam

Novas edições tornam texto mais acessível.
Tradução direto do grego para o português revela
novos sentidos para as Escrituras Sagradas.

É frequente a constatação: o brasileiro lê pouco. Num país de mais de 200 milhões de pessoas, as tiragens iniciais de lançamento de livros beiram os 3.000 volumes. Menos de um quarto da população diz ter o costume de ler romances, segundo dados do Instituto Pró-Livro de 2015. E, no entanto, há um volume que destoa do pobre hábito de leitura nacional e é frequentador das mesas de cabeceira de mais de 42% dos brasileiros: a Bíblia.

De olho no sucesso atemporal do best-seller (que é também o livro mais vendido no mundo na história), editoras nacionais lançam suas versões da Bíblia. Mas com uma diferença: as escrituras sagradas recebem novas traduções - e são tratadas como literatura.

Em 2011, na Noruega, o mercado editorial viveu fenômeno parecido.

No Brasil, em outubro de 2016, a Mundo Cristão lançou uma nova tradução, com tiragem de 500 mil exemplares. O texto foi fixado a partir do trabalho de uma equipe de 14 pessoas, durante seis anos, na chamada Nova Versão Transformadora. A editora tem um claro recorte religioso na abordagem das Escrituras Sagradas, mas se preocupou em usar linguagem descomplicada e acessível. Substituiu, por exemplo, a segunda pessoa do plural pela terceira: sai o “vós” e sua conjugação empolada, entra o prosaico “você”.

Nesse embalo, a editora Sextante fez um acordo com a Mundo Cristão, e, ainda no fim de 2016, lançou com tiragem de 30 mil volumes uma versão ainda mais fácil de ler. Usando a mesma tradução, editou uma versão da Bíblia em três tomos, que vêm em uma caprichada e ilustrada caixa, sob o título “O Livro da Vida”. O texto não tem divisão em versículos nem em capítulos: é para ser lido como um romance.

Mais recentemente, no fim de abril, a Companhia das Letras deu sua contribuição: lançou os quatro Evangelhos do Novo Testamento, primeiro volume de uma série de seis, que pretende publicar ao longo do ano da Bíblia completa. Com tradução para o português de Frederico Lourenço, a obra foi lançada em Portugal e recebeu pequenas adaptações na versão brasileira, com tiragem inicial de 7.000 exemplares.

A principal diferença da Bíblia que começa a ser lançada agora pela Companhia das Letras é a tradução feita diretamente do grego. “Esta não é uma Bíblia evangélica. Tivemos a preocupação de lançá-la com capa dura e diagramação amigável. É uma Bíblia para ser lida de forma literária. Mas também como documento histórico e religioso. Ela é muito cuidadosa e objetiva, repleta de anotações críticas sobre as escolhas da tradução”, afirma a editora Rita Mattar, responsável pela versão da Companhia das Letras.

COMO A BÍBLIA É COMPOSTA

Há muita confusão nas edições que se lançam no mundo da Bíblia, texto originalmente escrito em hebraico, aramaico e grego antigo, em data imprecisa. Basicamente, a obra se divide em duas:

1. ANTIGO TESTAMENTO

Escrito em hebraico (com trechos em aramaico), conta a história do mundo da criação e do povo de Israel. Para a religião judaica, é a única Bíblia que há e é dividida em 24 livros (chamados não de Antigo Testamento, mas de Tanach, palavra hebraica para livros sagrados).

Para a tradição protestante, esses mesmos 24 livros são divididos e subdivididos de outra forma, em 39 livros.

Já para o cânone católico, o Antigo Testamento é composto por 46 livros: os 39 escritos em hebraico e considerados pelos protestantes mais 7 livros escritos em grego.

Mas há, ainda, uma versão ainda mais abrangente do Antigo Testamento: a chamada Septuaginta, ou a Bíblia dos Setenta. Ela conta no total 53 livros, 7 a mais que o cânone católico. Ela foi traduzida do hebraico para o grego em Alexandria, supostamente por 72 rabinos, entre os séculos 3 e 1 antes de Cristo. É esta versão que serviu de base para a tradução feita por Frederico Lourenço para a Companhia das Letras.

2. NOVO TESTAMENTO

Escrito em grego, trata-se de uma coleção de 27 livros que narram a trajetória de Jesus Cristo. Enquanto o cânone do Antigo Testamento é disputado e discutido dentro do cristianismo, o do Novo Testamento é ponto pacífico entre católicos, protestantes e ortodoxos gregos. Os livros teriam sido escritos ao longo do século 1 da nossa era.

O VALOR LITERÁRIO DA BÍBLIA SEGUNDO BORGES

O ato de ler a Bíblia como literatura tem um defensor de peso: o escritor argentino Jorge Luis Borges. Ele considerava haver três histórias fundamentais no corpo da literatura: a história de Troia, narrada na “Ilíada”; a história de Ulisses, narrada na “Odisseia”; e a história de Jesus, narrada na Bíblia.

Na série de palestras que proferiu entre 1967 e 1968 na Universidade de Harvard, reunidas no livro “Esse ofício do verso”, o autor defende a importância dessas histórias épicas como formas narrativas poéticas definitivas e plenas de sentido - num momento em que poesia e prosa não eram apartadas.

“Pode-se dizer que, por muitos séculos, essas três histórias—a história de Troia, a história de Ulisses, a história de Jesus—têm sido suficientes à humanidade. As pessoas as têm contado e recontado muitas e muitas vezes; elas foram musicadas; foram pintadas. As pessoas as contaram inúmeras vezes, porém as histórias continuam ali, ilimitadas. Pode-se pensar em alguém, em 1.000 ou 10.000 anos, tornando a escrevê-las.” - Jorge Luis Borges
(Trecho do livro “Esse Ofício do Verso”, p.55)

Mas, ao mesmo tempo em que aponta os três textos como marcos fundadores da poesia épica na literatura, Borges exalta a narrativa que “avulta muito acima” dos poemas de Homero: os quatro Evangelhos do Novo Testamento - de Mateus, Marcos, Lucas e João.

Diz o escritor argentino que “a história de Cristo, a meu ver, não pode ser contada de modo melhor. Foi contada inúmeras vezes, porém os poucos versos em que lemos, por exemplo, Cristo sendo tentado por Satã, são mais fortes que os quatro livros juntos do ‘Paraíso Reconquistado’ [poema clássico do inglês John Milton, do século 16, baseado no Evangelho de Lucas]. Sente-se que Milton talvez não tivesse a menor ideia de que tipo de homem era Cristo.”

Para Borges, a história contada no Novo Testamento da Bíblia pode ser lida pelo fiel como “a estranha história de um homem, de um deus, que expia os pecados da humanidade. Um deus que se digna ao  sofrimento—à morte na ‘amarga cruz’, como diz Shakespeare”. Já os incrédulos podem “pensar num homem de gênio, num homem que pensava ser deus e que no final descobriu ser somente um homem, e que deus—o seu deus—o abandonara”.

O VALOR DA BÍBLIA GREGA SEGUNDO LOURENÇO

O autor da tradução da Bíblia grega para a Companhia das Letras é o lisboeta Frederico Lourenço. Professor de estudos clássicos na Universidade de Coimbra, é também romancista e ensaísta. Ganhou notoriedade por suas traduções da “Odisseia”, da “Ilíada” e das tragédias de Eurípedes, Hipólito e Íon. Suas versão de “Odisseia” recebeu prêmios da crítica especializada. Lourenço é convidado da 15ª Festa Literária de Paraty, a Flip, que ocorre em julho.

Para ele, a Bíblia grega “é um elemento fundamental para o estudo da história tanto do judaísmo como do cristianismo. Trata-se, simplesmente, de um marco da cultura universal que - pelo seu valor religioso, estético e histórico - urge conhecer”.

Lourenço respondeu a quatro perguntas enviadas por e-mail pelo Nexo.

- Qual é o valor estético e poético da Bíblia grega?

FREDERICO LOURENÇO: A Bíblia grega tem textos de extraordinária beleza literária no Novo Testamento, com destaque para o Evangelho de João e para as Cartas de Paulo. São textos dotados de sofisticação estética e de grande profundidade semântica. Os restantes três evangelhos têm igualmente marcadas qualidades literárias e o livro dos Atos dos Apóstolos é, em termos da sua materialidade verbal, um dos textos mais fascinantes de toda a literatura grega.

- É possível comparar a Bíblia à “Ilíada” e “Odisseia”, do ponto de vista da qualidade literária?

FREDERICO LOURENÇO: A “Ilíada” e a “Odisseia” têm qualidades diferentes da Bíblia: têm uma qualidade mais musical, pelo fato de estarem compostas em verso muito ritmado. Uma diferença é que a poesia homérica recorre a uma língua artificial que nunca foi falada na Grécia, enquanto a Bíblia grega usa a língua falada e escrita normalmente pelas pessoas no mundo grego após as conquistas de Alexandre. Dá para comprovar isso através dos muitos papiros gregos descobertos no Egito, que são contemporâneos da feitura da Bíblia grega.

- Qual é a diferença, em termos de linguagem, entre a Bíblia hebraica e a grega?

FREDERICO LOURENÇO: O Antigo Testamento grego dá-nos a ler um texto que é muitas vezes diferente do texto hebraico. Como o Antigo Testamento grego era a Escritura judaica lida pelos autores do Novo Testamento, há muito interesse em conhecer essas diferenças para reconstruirmos de forma mais objetiva a história do pensamento cristão e para nos colocarmos no enquadramento mental dos primeiros cristãos.

- Por que há, neste momento, um renovado interesse internacional em ler a Bíblia de uma forma não religiosa?

FREDERICO LOURENÇO: A Bíblia tem grande valor histórico e linguístico, independente do seu valor religioso. É possível que haja algum cansaço em relação à forma como a Bíblia é dada a ler pelas igrejas ao mesmo tempo que as pessoas sentem curiosidade em conhecer uma abordagem mais histórica e objetiva do texto da Bíblia e seus problemas.

- As inconsistências e dificuldade de atribuição de autoria ou data nos textos bíblicos não dificultam seu uso como documento histórico?

FREDERICO LOURENÇO: Sim, mas eu penso que apesar disso é possível usar a Bíblia para um estudo histórico do judaísmo e do cristianismo. É preciso ter consciência dos diferentes problemas que cada um dos livros levanta e aceitar um grau de incerteza em relação a muitas dúvidas insolúveis. Continuamos a não saber ao certo quem escreveu a maioria dos livros da Bíblia, nem quando. Mas isso não nos impede de fazer uma leitura histórica, o que significa estudar as condicionantes em que cada livro surgiu e perceber como essas condicionantes se projetam no próprio texto. O livro de Daniel pressupõe uma realidade histórica muito diferente da do livro de Amós, por exemplo. No caso do Novo Testamento, não podemos ler da mesma maneira a carta mais antiga que nos chegou de Paulo (a 1ª Carta aos Tessalonicenses) e uma carta que foi escrita em nome dele já depois da sua morte (como a 1ª Carta a Timóteo).